A filantropia comunitária está mudando a mentalidade na Etiópia
A filantropia comunitária está mudando a mentalidade na Etiópia

A filantropia comunitária está mudando a mentalidade na Etiópia

Quando o primeiro-ministro Abiy Ahmed assumiu o poder na Etiópia em 2018, as esperanças no país pareciam ter se renovado. Ahmed iniciou um período de transição, prometendo reformar o estado autoritário, realizar eleições e implementar políticas de liberalização. No entanto, muitas leis restritivas permanecem em vigor e o país ainda enfrenta uma guerra civil e a violência entre diferentes comunidades ou grupos étnicos, além de abusos por parte das forças de segurança. Desde 2020, os combates entre o Governo Federal e a Força de Defesa Tigray causaram o deslocamento de 3,8 milhões de pessoas e outras 420.887 pessoas foram forçadas a se deslocarem dentro do próprio território devido à seca (IOM, abril de 2022). Ainda, há sérias alegações de violência e atrocidades se espalhando por regiões vizinhas. Diante dessas circunstâncias, não surpreende que o Civicus Monitor tenha classificado o estado da sociedade civil Etíope como reprimido.

É nesse contexto que o programa Giving for Change (Doar para mudar) está sendo implementado, por meio de uma estratégia de filantropia comunitária para mobilizar recursos, influenciar formuladores de políticas públicas e dar voz a uma ampla gama de atores sociais. Ainda assim, são muitas as dificuldades encontradas para que se possa avançar na questão dos direitos humanos no país, já que muitas organizações da sociedade civil relutam em se envolver nessas questões com medo de serem rotuladas como “apoiadoras de grupos rebeldes”, o que limita ainda mais a participação de mais vozes e sua agência na busca por mudança.

Quais são as oportunidades de mudança diante desse quadro e o que o futuro reserva para o programa e para a Etiópia? Para conhecer como as atividades estão sendo desenvolvidas, Ese Emerhi (Global Fund for Community Foundations – GFCF) e Barry Knight (conselheiro do GFCF) entrevistaram Daniel Asfaw, Coordenador Nacional do Programa Giving for Change na Etiópia, desenvolvido junto ao Development Expertise Center (DEC) (instituição âncora do programa no país). A conversa também teve o objetivo de conhecer melhor o trabalho da DEC na construção da filantropia comunitária por meio do programa Giving for Change.

A entrevista foi conduzida em Junho de 2023.

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Os primórdios do programa Giving for Change

Barry Knight (BK): Como tudo começou para você? O que o levou a trabalhar com a questão do desenvolvimento? E como era o ambiente na Etiópia quando o programa iniciou?

Daniel Asfaw (DA): Sempre fui apaixonado por esse tipo de trabalho. Antes de 2019, no entanto, não havia muitas oportunidades de trabalhar na questão da defesa de direitos, em razão especialmente do ambiente político bastante restrito na Etiópia. O espaço cívico era muito limitado durante o governo anterior. E embora a DEC já esteja trabalhando nessa causa há algum tempo, não tem sido uma tarefa fácil.

Em 2019, mais ou menos, várias promessas foram feitas pelo novo governo do primeiro-ministro Ahmed. Foi um período de transição e o espaço cívico realmente se beneficiou do clima positivo da época. A chamada Proclamação das Organizações da Sociedade Civil feita pela nova administração parecia abrir espaço em áreas relacionadas à defesa de direitos. Ela reconhecia que:

O espaço da sociedade civil oferece o ‘oxigênio’ necessário para que os cidadãos participem e de fato responsabilizem os governos e o setor privado, garantindo que as decisões sejam tomadas no interesse da maioria e não de poucos. Sem esse espaço, os cidadãos têm pouca margem para discordar e desafiar as elites.

Isso representa um fértil terreno para a introdução de um programa como o Giving for Change, e a DEC soube aproveitar o ambiente promissor no país. No entanto, a atual imprevisibilidade do contexto político acabou trazendo um certo retrocesso, o que significa que devemos estar mais vigilantes do que nunca diante da crescente repressão do governo.

Sobre como me senti em relação ao programa, devo dizer que no início foi um tanto complicado. Os objetivos me pareciam irreais e me perguntava como poderíamos influenciar os detentores do poder e outros envolvidos em processos decisórios e como engajar as comunidades para amplificar suas vozes. Todos desconfiavam das organizações da sociedade civil e do governo.

Nesse sentido, a filantropia comunitária foi o ponto de entrada para tentarmos mudar mentalidades. A iniciativa do Fundo de Mobilização de Recursos motivou as pessoas e as comunidades, pois puderam vislumbrar a possibilidade de influenciar os tomadores de decisão. Também nos ajudou a expandir nosso trabalho de atuar com as comunidades para identificar seus interesses, as questões com as quais desejam trabalhar e como podem desenvolver estratégias de defesa de direitos. As comunidades identificam o problema, as ajudamos a elaborar uma mensagem e um plano, e então elas mobilizam recursos para implementar o projeto.

Testemunhamos uma mudança de atitude por parte de algumas entidades governamentais; quando perceberam que nosso interesse era apenas desenvolver as capacidades das comunidades e criar um ambiente mais propício [para o desenvolvimento], elas se dispuseram a trabalhar para mudar algumas diretrizes de políticas nos níveis de base e nacional. O relacionamento com as entidades governamentais está mais tranquilo agora.

Desde então, a DEC expandiu sua influência do nível comunitário para o nacional. Observamos uma mudança de atitude em algumas entidades governamentais, que perceberam que nosso interesse era apenas fortalecer as capacidades das comunidades e criar um ambiente mais favorável ao desenvolvimento. Agora nosso relacionamento com essas entidades está mais tranquilo e elas estão dispostas a trabalhar na mudança de algumas diretrizes políticas em níveis local e nacional.

Estou um pouco mais confiante em relação ao trabalho. Não estamos apenas construindo confiança com as comunidades, mas também internamente como organização. As comunidades estão começando a perceber que são responsáveis por seu próprio desenvolvimento e que podem mobilizar recursos para enfrentar seus próprios desafios.

Ese Emerhi (EE): Qual foi o impacto do programa Giving for Change?

DA: O programa nos ajudou a construir um melhor relacionamento com as agências do governo e com doadores internacionais operando no país. Conseguimos abrir mais espaços ao organizar diferentes diálogos sobre defesa de direitos; e curiosamente todo mundo tem participado desses diálogos.

Para as comunidades, agora é possível reimaginar o desenvolvimento. Ao fazer uso do modelo e da formação obtida na Change the Game Academy, percebemos que as diferentes comunidades de prática e grupos de trabalho temáticos criados estão ganhando a confiança das pessoas localmente. Esses diferentes arranjos têm a capacidade de rejeitar as iniciativas propostas pelos detentores do poder, como por exemplo, no caso da comunidade de Bedele Town, onde as pessoas identificaram um pequeno projeto para trabalhar: a construção de uma biblioteca comunitária. No entanto, o prefeito daquela comunidade queria construir salas de aula. Por meio das formações sobre defesa de direitos e lobby que realizamos com a comunidade, as pessoas foram capazes de resistir aos propósitos do prefeito e conseguiram manter sua ideia original da biblioteca, fazendo uso de recursos locais.

Outro exemplo é o trabalho em torno dos abusos em relação aos direitos humanos. Em Batu, uma das áreas de implementação do Giving for Change, houve problemas de poluição ambiental e uma crise de saúde na comunidade devido ao uso de produtos químicos nocivos para o cultivo de flores por empresas privadas holandesas. Os rios estão poluídos e há um aumento nos casos de câncer. Utilizando as estratégias e táticas da formação sobre direitos que oferecemos, a comunidade se tornou mais consciente das questões ambientais e defendeu o uso de produtos químicos menos nocivos na produção agrícola dos investidores estrangeiros.

Nos últimos três anos, a DEC vem se empenhado em promover um processo de localização da cooperação no país. Aproveitamos a oportunidade da Semana Nacional das Organizações da Sociedade Civil para envolver doadores internacionais e partes interessadas da administração pública. Durante esse evento anual, organizamos consistentemente painéis sobre a localização da cooperação – a Semana Nacional é organizada no formato de quatro sessões de painel concorrentes e, através de nossa forte ação na defesa de direitos e influência junto a instituições nacionais e organizações não governamentais internacionais, conseguimos espaço para mostrar nosso impacto e engajamento com as comunidades por meio dos painéis que organizamos.

Ainda é cedo para dizer quais elementos específicos do programa sofrerão mudanças no futuro. Pode ser necessário focar mais em algumas áreas e reduzir outras, mas ainda não tomamos essas decisões.

O trabalho em meio ao conflito

BK: O programa é afetado pelo conflito em curso, especialmente na parte norte do país?

DA: Felizmente, o conflito está ocorrendo em uma região distante das áreas onde estamos implementando o programa. No entanto, enfrentamos alguns impactos indiretos devido a restrições de movimento e postos de controle em certas áreas. O governo solicitou apoio das empresas e comunidades para ajudar nas operações militares contra os rebeldes, como fornecimento de alimentos, roupas e suprimentos militares. Inicialmente, as comunidades de prática resistiram a esse pedido de apoio, pois consideravam que seu trabalho era defender um país livre de conflitos. Além disso, os cidadãos nas comunidades se sentiam sobrecarregados, pois eram solicitados a contribuir tanto pelo governo (que pedia apoio para as atividades militares) quanto pelas comunidades de prática (que solicitavam apoio para os projetos de desenvolvimento local). Recentemente essa pressão na forma de “doações forçadas” diminuiu um pouco, e as comunidades agora já podem direcionar seus recursos limitados para outras questões locais.

No entanto, ainda há conflitos ocorrendo na região de Oromia. Isso nos impede de planejar atividades com algumas das nossas comunidades de prática. Tivemos que reprogramar parte das ações e as comunidades de prática assumiram a liderança trabalhando diretamente com as pessoas localmente, uma vez que já conquistaram sua confiança. Esses grupos de prática adotam uma abordagem neutra e apolítica, utilizando equipes de trabalho técnico para colaborar com os tomadores de decisão. Essa abordagem mais suave permitiu que algumas agências governamentais se envolvessem no trabalho.

BK: Quais são os principais desafios que você enfrenta na implementação do programa?

DA: Certamente existem desafios, mas eles variam de acordo com o contexto e os distritos em que trabalhamos. Como mencionei anteriormente, havia poucas oportunidades para o trabalho no campo dos direitos humanos e da defesa de direitos, dada a restrição do espaço cívico durante a administração anterior. Algumas organizações da sociedade civil ainda têm receio de se envolver nesse tipo de trabalho devido a experiências passadas, como suspensão de licenças ou detenção. Portanto, reconquistar a confiança das comunidades e de outras organizações é uma tarefa árdua.

Quando se trata de defesa de direitos, é uma via de mão dupla. Requer uma defesa contundente, mas também boa vontade por parte dos tomadores de decisão. Ambas as partes precisam estar abertas ao diálogo e trabalhar juntas para identificar oportunidades e um caminho a seguir. No início do nosso trabalho no Giving for Change, muitas agências e representantes governamentais relutavam em colaborar conosco ou mesmo ouvir nossas propostas. Tivemos que encontrar maneiras diferentes de envolvê-los, trabalhando às vezes com parceiros que já possuíam um relacionamento estabelecido com esses atores poderosos.

O mesmo desafio se aplica ao trabalho com as comunidades. Elas ainda estão presas à mentalidade anterior, que acredita que o desenvolvimento é responsabilidade exclusiva do governo ou das organizações da sociedade civil. Aos poucos, com os resultados que temos mostrado, as comunidades estão percebendo que têm o poder de provocar mudanças e são capazes de conduzir seu próprio desenvolvimento.

EE: O que o programa e seus parceiros podem fazer para ajudá-lo a superar esses desafios? Ou você acredita que a situação na Etiópia é única quando se trata de promover a filantropia comunitária?

DA: O programa Giving for Change tem nos ajudado muito a fortalecer nossas capacidades internas em relação à defesa de direitos. Se quisermos trabalhar para “transferir o poder” (#shiftthepower) ou da filantropia comunitária, é essencial começar internamente, na nossa própria organização. Isso não deve envolver apenas a equipe do departamento de defesa de direitos, mas também os membros de outras unidades, que devem entender os conceitos e construir confiança em torno deles. O programa nos proporcionou uma abordagem mais holística, em vez de considerá-lo apenas como um projeto a ser implementado. Ao nos fortalecermos internamente, somos capazes de contribuir para o desenvolvimento da capacidade dos outros.

O programa também nos ajudou a atrair outros doadores. Agora temos um novo projeto chamado “CSF Plus”, financiado pela União Europeia, que tem como objetivo capacitar as organizações locais da sociedade civil para uma participação ativa na governança pública. Acredito que esse novo projeto nos ajudará a expandir nosso trabalho para diferentes regiões da Etiópia.

O futuro

BK: Isso que você está compartilhando aqui é realmente animador, Daniel! É uma história muito boa de mudança! Mas agora, como você vê o futuro? O que vem a seguir para você? Como vê o restante do programa Giving for Change e o que quer levar adiante?

DA: Então, quer chamemos de “#shiftthepower”, localização, ou filantropia comunitária, tudo isso ainda está em um estágio inicial aqui na Etiópia porque não há muitos exemplos de como fazer a cooperação para o desenvolvimento de uma maneira diferente, e não observamos outros atores promovendo isso. Esperamos que as comunidades de prática criadas possam se sustentar além do programa e já conseguimos observar como os representantes do governo estão respondendo bem ao programa. Tentamos incentivá-los a incluir elementos do programa Giving for Change – especialmente filantropia comunitária – em quaisquer novas iniciativas de desenvolvimento que estejam planejando ao trabalhar com as comunidades.

Precisamos nos preparar para possíveis mudanças no ambiente político do país. Como mencionei anteriormente, o ambiente atual é instável. Não queremos perder o impulso que já conseguimos dar com o programa. Para manter essas questões constantemente em destaque, estabelecemos a Rede Nacional de Filantropia da Etiópia, reunindo outras instituições e organizações da sociedade civil com ideias semelhantes para defender a importância da filantropia comunitária e influenciar o governo na criação de um ambiente mais propício para seu crescimento. Estamos embarcando nessa jornada com elas.

E, do nosso ponto de vista, o futuro parece promissor!

EE: Ao lhe ouvir, Daniel, é evidente a evolução da mudança de mentalidade que ocorreu tanto em você pessoalmente quanto na DEC como instituição. Essa é a essência do programa Giving for Change, transformar mentalidades e comportamentos e defender uma forma diferente de tomar decisões e promover o desenvolvimento. Uma coisa que aprendi com a nossa conversa hoje é a importância de se manter engajado no longo prazo e ter paciência. É realmente a impressão que me marcou. E isso requer muito trabalho!

Uma versão deste artigo também foi traduzida para o francês e o inglês.